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Conceição Evaristo analisa maternidade atípica, viuvez precoce, rotina intensa e chegada aos 80 anos: ‘Não descanso’

Conceição Evaristo fica em silêncio por alguns instantes, mira o teto, respira fundo e encara a câmera da chamada de vídeo com olhos d’água. A escritora se emociona ao falar da mãe, Joana Josefina, que morreu em 2021, aos 98 anos. Tocada por “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, Josefina, que também era […]


Conceição Evaristo fica em silêncio por alguns instantes, mira o teto, respira fundo e encara a câmera da chamada de vídeo com olhos d’água. A escritora se emociona ao falar da mãe, Joana Josefina, que morreu em 2021, aos 98 anos. Tocada por “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, Josefina, que também era empregada doméstica, começou a manter um diário. Agora, Conceição trabalha num romance que mistura suas memórias de filha ao diário de Josefina, já homenageada no poema “De mãe”: “e me ensinou, insisto, foi ela/, a fazer da palavra artifício/ arte e ofício do meu canto,/ da minha fala”.

Maria da Conceição Evaristo nasceu em 1946, na Favela Pindura Saia, em Belo Horizonte. Ouviu o chamado da literatura ainda menina e conciliou estudos e empregos domésticos até se formar professora e mudar-se para o Rio. Começou a publicar em 1990, nos “Cadernos negros”, do coletivo Quilombhoje. Seu primeiro romance, “Ponciá Vicêncio”, já estava pronto no fim dos anos 1980, mas só foi lançado em 2003, em edição paga pela autora.

O reconhecimento só veio na década seguinte. Em 2015, seu livro de contos “Olhos d’água” venceu o Prêmio Jabuti. Hoje, ela é uma das escritoras mais festejadas do Brasil, arrasta multidões por onde passa. Seu poema “Vozes-mulheres” foi discutido em “Dona de mim”, novela das sete da TV Globo. No dia 19, ela participa da mesa “Memória e resistência” na Bienal do Livro do Rio (de 13 a 22 de junho), ao lado da cubana Teresa Cárdenas e da sul-africana Zukiswa Wanner.

A escritora Conceição Evaristo. Vestido e quimono, Mônica Anjos. Acessórios de acervo pessoal — Foto: Karla Brights
A escritora Conceição Evaristo. Vestido e quimono, Mônica Anjos. Acessórios de acervo pessoal — Foto: Karla Brights

Autora de lemas do movimento negro (como “eles combinaram de nos matar, mas a gente combinamos de não morrer”), Conceição inventou um novo gênero literário, a “escrevivência”, nascida da experiência afro-brasileira, que, desobrigada de entreter a casa-grande, põe-se a contar a própria história. Em 2023, ela fundou a Casa Escrevivência, no Centro do Rio. De seu lar carioca (ela se divide entre o Rio e Macaé), a autora de “Becos da memória” conversou com ELA sobre religiosidade e maternidade atípica, garantiu ser boa de briga e explicou por que nunca desistiu da literatura: “Não quero deixar obra póstuma”.

Qual é o lugar da memória na escrevivência?

Se minha mãe e minhas tias escrevessem, teriam sido memorialistas. Cresci ouvindo as memórias delas. É a memória que coloca os negros como sujeitos fundantes da nação brasileira. Na literatura, o romantismo criou mitos fundantes da identidade nacional. Em “Iracema”, de José de Alencar, o brasileiro é filho de um português e de uma indígena. O negro escravizado não entra no mito. É a memória e a escrita de autoria negra que, ao recuperar personagens como Zumbi e Dandara dos Palmares, nos possibilita inventar uma tradição e nos colocar também como fundadores da nação.

Decoração da casa da escritora Conceição Evaristo, no Rio — Foto: Karla Brights
Decoração da casa da escritora Conceição Evaristo, no Rio — Foto: Karla Brights

Como sua mãe influenciou sua trajetória?

Ela me ensinou a assuntar o mundo. Era silenciosa e intensa, um vulcão de pensamentos colhidos na observação do mundo. Dizia: “Fulano chegou aqui contando isso e aquilo e fiquei só olhando o pé dele”. O que isso queria dizer? Ela estava antecipando o próximo passo da pessoa. A escrita me exige esse senso de observação que ela tinha. Para captar o mundo, por mais ligeiro que ele seja, não se pode ter pressa.

Por que a senhora só foi reconhecida como uma grande escritora perto dos 70 anos?

Dizem que nós negros somos mimizentos. De fato, ser uma mulher negra me impediu de acessar certos lugares e ser lida. A crítica literária acha que o nosso texto só fala de questões raciais e não presta atenção à estética. Nunca me esqueço de que trabalho com a arte da palavra. Vários escritores só passaram a me cumprimentar depois que eu ganhei o Jabuti. Ser uma escritora negra reconhecida desperta a curiosidade, acham tão inacreditável que acabam me lendo.

O primeiro lugar de recepção da minha obra foi o movimento social negro. Ter uma coletividade que me lia foi importante para eu saber meu valor. A literatura me escolheu. Desde menina, eu sabia que a vida não podia ser pouco, a vida tem que ser muito. Com a literatura, a minha vida é muito.

O que aprende com seus jovens leitores?

Muitos são crianças, têm idade para ser meus netos. Eles me fazem ver que a sociedade brasileira está amadurecendo e que, apesar de tantas mazelas, estamos construindo um futuro justo, onde todos vamos caber, onde todas as vidas serão possíveis.

Na escola, a senhora venceu um concurso de redação com o tema “Por que me orgulho de ser brasileira”. O orgulho permanece?

Aquela redação tinha uma coisa meio “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” (risos). Me orgulho de ser brasileira porque meus ancestrais, os escravizados e seus descendentes, construíram essa nação. Se o Brasil tem vergonha de sua história, a culpa não é do meu povo. Marcamos positivamente essa nação.

A escritora Conceição Evaristo. Vestido, sapatos e acessórios, acervo pessoal. Quimono Mônica Anjos. — Foto: Karla Brights
A escritora Conceição Evaristo. Vestido, sapatos e acessórios, acervo pessoal. Quimono Mônica Anjos. — Foto: Karla Brights

A senhora foi batizada no dia de Nossa Senhora da Imaculada Conceição e recupera as narrativas das religiões afro-brasileiras nos seus textos. Como é a sua fé?

Fui criada no “catolicismo negro”, que é contaminado por práticas de religiões afro-brasileiras. Fui batizada, fiz primeira comunhão, casei na igreja, batizei minha filha. Minha relação com a fé católica está viva, inclusive no meu nome. Me sinto protegida por Nossa Senhora da Imaculada Conceição, Anastácia, Oxum, Iemanjá e Santa Rita de Cássia.

É tida como um símbolo de resistência. Como descansa?

Não descanso. Durmo pouco, não tiro férias. As meninas que trabalham comigo cuidam de mim, me dizem para não aceitar tanto convite. Mas se eu vou à Bienal, como é que eu não vou a uma escola do interior que me chama? A demanda é grande, faço de tudo para dar conta, não gosto de fazer nada superficialmente. Ando com pouco tempo para a escrita. No segundo semestre, não vou assumir mais compromissos porque preciso escrever. Não quero deixar obra póstuma.

Ficou viúva aos 43 anos. Quis se casar de novo?

Casar, não. Namorar, sim. Nunca fui seduzida pelo vestido de noiva, sempre achei ridículo. Minha família era de mães solo. Minha mãe teve quatro filhas, cada uma de um pai diferente, conheceu meu padrasto, teve cinco filhos com ele, e só depois casaram. Conheci meu marido, Oswaldo, com mais de 30 anos e fui mãe aos 34. Tivemos uma relação de muita cumplicidade, eu sabia que não viveria outra igual.

A escritora Conceição Evaristo: "Com a literatura, a minha vida é muito" — Foto: Karla Brights
A escritora Conceição Evaristo: “Com a literatura, a minha vida é muito” — Foto: Karla Brights

Sua filha, Ainá, nasceu com uma deficiência genética rara que afetou seu desenvolvimento psicomotor e cognitivo. Como viveu a maternidade atípica?

O médico disse que Ainá não passaria dos três meses de vida. Ela está com 44 anos. Tenho certeza de que veio ao mundo para ser minha filha. Ela foi meu esteio quando meu marido faleceu. Ainda me emociona falar da passagem de Oswaldo porque eu não pude chorar na época. Se chorava, ela vinha com os olhinhos arregalados e chorávamos juntas. Ser mãe de Ainá me deixou um pouco prepotente, porque eu dei conta, minha vida não parou e consegui fazer dela uma pessoa feliz. Não tenho paciência com quem faz estardalhaço porque espetou o dedo num alfinete.

Na infância, seu apelido era “Brigadeira” por arrumar confusão. Ainda é boa de briga?

Sempre reivindiquei tudo a que tinha direito. Dizem que eu brigo com elegância, porque digo coisas que a pessoa demora para digerir. Mas nem tudo se fala na hora. Às vezes, você se cala, recua um pouco, amadurece e então volta com tudo.

Em 2018, a senhora se candidatou à ABL, mas não se elegeu. Na sequência, a academia acolheu figuras como Gilberto Gil e Ailton Krenak. Os imortais entenderam o seu recado?

Lá dentro tem cabeças pensantes e sensíveis. Minha candidatura nasceu fora da instituição, de um movimento coletivo que uniu homens e mulheres, negros e brancos. Tive só um voto, mas sem nenhuma modéstia posso dizer que foi uma campanha vitoriosa, porque ajudou a ABL a desejar mais representatividade.

Ano que vem, a senhora completa 80 anos. O que a move nesta fase da vida?

Tenho vários projetos, como um romance sobre a minha mãe e um livro de poemas que eu não quero chamar de eróticos.



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