Rita Lee (1947-2023) nasceu num ingrato dia 31 de dezembro e queria — como sempre quis, na vida — o improvável, o impossível. No caso específico, ela reivindicava que seu aniversário passasse a ser comemorado em 22 de maio, o dia de Santa Rita, mas sem, com isso, deixar de ser capricorniana.
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“Vou continuar sendo capricorniana, gosto de ser”, decreta ela em uma das cenas de “Ritas”, documentário dirigido por Oswaldo Santana e codirigido por Karen Harley que chega às salas de cinema nesta quinta-feira, justamente o dia de Santa Rita. É uma das homenagens que a Rainha do Rock Brasileiro — artista inquieta e irreverente, de muitos talentos e facetas artísticas — recebe nos dois anos de sua morte.
A festa para Rita começou no último dia 8 (data do falecimento, de câncer), com o lançamento do filme documental para TV “Mania de você” (no streaming do Max), do diretor argentino Guido Goldberg, cujo grande trunfo é a revelação de uma carta escrita pouco antes da morte, endereçada aos seus três filhos e ao marido e parceiro musical, Roberto de Carvalho.
Quinta-feira (22) estreia “Ritas” e, no domingo (25), acontece em São Paulo, na Virada Cultural, na Praça da República, o show “Um caso sério”, homenagem à obra de Roberto (e de Rita Lee) com as participações de Johnny Hooker, Fernanda Abreu, Gabi Melim e Paulo Miklos, entre outros artistas.
Ao GLOBO, Roberto de Carvalho diz estar honrado com a homenagem na Virada. Mas dá uma má notícia:
— Infelizmente, não vou estar presente, pois tenho uma viagem marcada já há bastante tempo e não deu para desmarcar. Mas estou torcendo para que seja um grande sucesso, uma grande celebração — diz ele, confirmando a especulação de que haveria outros projetos envolvendo Rita em preparação. — Sim, eles existem, e todos estão protegidos pela infame e sempre presente cláusula de confidencialidade. Mas, de todo jeito, estou trabalhando num filme semificcional cujo enfoque é minha relação com Rita e estou escrevendo um livro de memórias que está temporariamente descansando. Virão também um musical, um outro filme de ficção e o maior projeto de todos, que está sendo desenvolvido por nosso filho João no maior sigilo. Tudo isto não necessariamente para este ano, porque o timing de realização tende a ser meio longo.
Roberto conta que “Mania de você” e “Ritas” foram feitos “Em épocas diferentes”, mas acabaram ficando “quase complementares”.
— “Ritas” começou a ser rodado antes da pandemia, nem imaginávamos o que estava por vir. Nosso envolvimento foi no sentido de a Rita fazer as autofilmagens e dar as entrevistas. Fizemos uma seleção de material de nossos home videos para serem usados — esmiúça. — Já no “Mania de você”, as entrevistas com a família foram feitas a um mês da partida da Rita, um momento muito dramático para nós todos. Fizemos uma outra seleção de home videos para esse filme, uma seleção difícil, porque temos muito material inédito. Mas, basicamente, a família não teve nenhum grande envolvimento nos dois documentários, as escolhas ficaram muito a critério dos diretores e roteiristas.
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“Ritas” é um projeto que começou em 2018, e segundo o diretor, foi baseado em “Uma autobiografia” da cantora, lançada pela Globo Livros com muito sucesso em 2016.
— Quando a gente estava tentando chegar ao recorte do filme, veio o estalo: não existe uma Rita ali a ser aprofundada, elas são várias. Então, a gente está falando de uma personalidade maior, que gerencia todas essas Ritas — explica Oswaldo Santana, que optou por fazer um filme sem depoimentos sobre a artista (enquanto “Mania de você”, por sua vez, tem de Gilberto Gil a Ney Matogrosso falando dela). — Em “Uma autobiografia”, é a gente escutando a Rita. E a gente acreditou muito nessa força da Rita de contar sua própria história, como uma pessoa tão incrível, tão verdadeira e tão debochada que ela é.
Para cumprir seus propósitos em “Ritas”, Oswaldo partiu para um monumental trabalho de pesquisa de imagens, que foi iniciado por Antonio Venancio, autoridade absoluta no assunto quando se trata de documentário cinematográfico brasileiro. Elas vieram a complementar uma entrevista exclusiva com Rita, “muito norteada pela autobiografia”, que pontua todo o filme, feita em 2018, pela codiretora Karen Harley. E também o material que veio de um celular dado a Rita pela produção, para que ela mesma registrasse momentos íntimos, já na reclusão da pandemia, “tendo esses insights, essas brisas”.
— Era sempre uma grande surpresa quando chegavam novos lotes de material. Rita saía falando no momento de cuidar dos bichinhos ou de regar as plantas. Mas há uns momentos mais produzidos, do tipo “vou dar um depoimento, tô num momento bom, quero falar” — conta Oswaldo. — Depois, houve uma segunda pesquisa, feita pela Eloá Chouzal, uma grande pesquisadora daqui de São Paulo, para trazer um outro tipo de material, fotográfico, que foi trabalhado pelo Ricardo Fernandes, o diretor de arte.
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Na entrevista de 2018 para “Ritas”, ainda antes do diagnóstico do câncer, a cantora fazia algumas reflexões sobre a morte (“quase uma premonição, que mostra toda a clareza que ela enxergou a vida”, diz o diretor). A cada etapa do filme que se encerrava, eles mandavam um pedaço para Rita assistir.
— Chegou a mim a informação de que, sim, um pouco antes de a Rita falecer, ela chegou a assistir a um corte que já tinha muito essa estrutura do filme, embora o trabalho de arte ainda não estivesse tão bem lapidado. Ela deu o o.k. para a gente prosseguir — conta Oswaldo, que até o começo da pandemia teve um contato mais direto com Rita, depois intermediado por Roberto de Carvalho (“que sempre foi muito solícito”).
Um caleidoscópio do que foi Rita Lee nos palcos (junto com todo mundo que se pode imaginar da MPB, de Maria Bethânia a João Gilberto), na TV (inclusive com cenas do impagável “TV Leezão”, da MTV, em que ela viveu os mais tresloucados personagens) e no cinema (em que foi até… Raul Seixas!), “Ritas” é definitivamente um filme musical (“a gente começou com 12 músicas, subiu para 20, e acabou que ficou com mais de 30 músicas, para contemplar a linguagem que se seguia.”).
— “Ritas” é um filme pensado para o cinema, com linguagem de cinema. A gente acreditou muito nesse poder de imersão que a sala escura tem, com um som bacana, com uma tela legal e com reações ao seu lado — garante Oswaldo. — É por isso que a gente solta as músicas. É um documentário musical, nada mais justo é que a gente se jogue no meio de tantos hits, deixe o público curtir, deixe a memória trazer outras coisas. Depois, a gente volta ao fluxo da narrativa.
‘O start de uma carreira’
Sem entrar no mérito da série “Mania de você” (“A Rita é uma fazenda de grandes projetos, dá para se observá-la sob diferentes óticas, e a nossa é a do cinema”), Oswaldo comenta a pouca presença da fase inicial da carreira de Rita, com o grupo Os Mutantes, em seu filme — ele alega haver poucas imagens da banda com Rita, a dificuldade em liberar o material e a própria “delicadeza” do assunto para a artista (que aparece em “Ritas” contando como foi expulsa do grupo):
— Acho que a gente conseguiu dar o ponto de vista dela sobre essa fase, que é muito importante, mas vamos lembrar: é o start de uma carreira, e um start que durou pouco e não teve a mesma dimensão em relação ao todo dessa carreira.
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Com o lançamento dos dois documentários sobre Rita Lee, Roberto de Carvalho diz ter tido “uma sensação de missão cumprida, apesar de eu não ter sentido nem um milímetro de diminuição da saudade”.
— Mas é uma saudade sem dor. E acho que a Rita teria apreciado, o que para mim é o mais importante de tudo — diz ele, para quem a próxima leva de material inédito de Rita Lee ainda demora a sair. — Temos que ser muito criteriosos e parcimoniosos com as eventuais novidades. Tem que haver organicidade.