A Polícia Federal apontou que o ex-presidente Jair Bolsonaro era “o principal destinatário” de uma estrutura paralela montada na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para realizar ações clandestinas durante seu governo. As investigações apontam o uso do órgão de inteligência para ações como espionagem de políticos, para levantar informações que pudessem desacreditar o sistema eleitoral e para blindar familiares. As conclusões estão no relatório final do caso, enviado ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em um documento de 1125 páginas, a PF afirma que as evidências levantadas ao longo da investigação “corroboram a concorrência” do então presidente com ações delituosas realizadas na Abin. Para os investigadores, Bolsonaro era quem comandava uma organização criminosa que atuou na agência e, ao lado do filho Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, definia as “diretrizes estratégicas” do esquema e determinava os alvos das ações clandestinas. Os dois compunham o que os investigadores chamaram de “núcleo político” do grupo.
O órgão era comandado à época pelo hoje deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), policial federal que coordenou a equipe de segurança do ex-presidente durante a campanha eleitoral de 2018. Para a PF, a formação de uma estrutura de “inteligência paralela” na Abin, formada por um delegados e três agentes, foi idealizada por Carlos, “por não confiar nas estruturas oficiais”.
Ramagem, Carlos e outras 34 pessoas foram indiciadas no caso. Agora, a Procuradoria-Geral da República vai decidir se há elementos para apresentar uma denúncia. No relatório final, a PF também aponta a responsabilidade criminal do ex-presidente no esquema de espionagem ilegal, mas deixou de inclui-lo na lista de indiciados por ele já responder pelo mesmo crime de organização criminosa na ação penal da trama golpista no STF.
A apuração teve início após o GLOBO revelar, em março de 2023, a compra de um sistema espião pela agência para monitorar a localização de alvos pré-determinados em todo o país. A estrutura montada no órgão de inteligência ficou conhecida como “Abin paralela”.
Após dois anos de investigação, o relatório final da PF cita documentos encontrados em computadores de Ramagem que, segundo as investigações, eram direcionados a Bolsonaro. Os textos tinham títulos como “Bom dia Presidente” e “Presidente TSE informa” e continham informações usadas para atacar as urnas eletrônicas ou orientações que seriam repassadas ao ex-presidente.
“As anotações revelam ações, cujo produto era encaminhado ao Presidente da República, materializando as ilicitudes perpetradas durante sua gestão como Diretor da ABIN em especial a disponibilização da estrutura do Estado Brasileiro para ações desviadas do sentido republicano”, diz trecho do documento da PF.
A PF incluiu no relatório final elementos que rebatem a versão dada por Ramagem em depoimento que os documentos apreendidas eram apenas “anotações mentais”, e não eram para Bolsonaro.
Em ao menos dois casos, a investigação aponta que mensagens com textos idênticos foram encaminhadas ao celular atribuído a Bolsonaro. Um outro documento, intitulado “Bom dia Presidente.docx”, foi enviado a um grupo de WhatsApp que contemplava policiais federais que assessoravam Ramagem na Abin.
Uma das anotações de Ramagem, afirma a PF, revela a motivação das ações clandestinas na Abin. O documento “PR Presidente.docx” traz orientações sobre mudanças no Conselho da República com a finalidade de intervenção federal.
Ramagem afirma que está analisando o material, mas ontem se manifestou contestando a investigação da PF, assim como Carlos. Já Bolsonaro não se manifestou, mas já negou em outras ocasiões ter participado do grupo.
A PF aponta que a estrutura da “Abin paralela” foi utilizada para impulsionar manifestações contra as urnas eletrônicas e de apoio a Bolsonaro. Segundo o relatório, houve “desvio de recursos humanos, financeiros e tecnológicos” para “fins estritamente políticos”.
Um exemplo citado é o uso de drones pela Abin em um ato pelo voto impresso no Ceará, em 2021. Segundo os investigadores, os aparelhos foram utilizados no “acompanhamento de manifestações públicas para fins de pautas pessoais e ideologicamente direcionadas”.
Um dos ex-agentes da Abin relatou, em depoimento, que Ramagem usava as imagens geradas por drones em publicações nas suas redes sociais. O material exibia motociatas e manifestações pró-Bolsonaro.
A PF afirma ainda que foram instaladas câmeras “exclusivas” da Abin em “toda a Esplanada” dos Ministérios, em Brasília, durante a gestão de Ramagem.
Ao fim do inquérito, os investigadores dividiram a suposta organização criminosa em seis núcleos. Além do grupo político, havia o “núcleo da estrutura paralela”, composto por servidores da confiança de Ramagem, a maioria de policiais federais cedidos e oficiais de inteligência. Seriam os responsáveis, por exemplo, pelo uso do software espião First Mile, usado de forma ilegal.
Já o núcleo de gestão da estrutura operacional de inteligência era responsáveis por ações clandestinas. O núcleo dos “vetores de produção e propagação de fake news”, com assessores e servidores lotados na Presidência da República, recebiam dossiês e repassavam informações falsas.
Por fim, há a indicação do “núcleo do embaraçamento da investigação”, com servidores que comandam a atual gestão da Abin. Eles teriam sido responsáveis por tentar barrar as apurações.
A PF já havia apontado que autoridades dos poderes Judiciário e Legislativo, servidores e jornalistas, foram alvos de “ações clandestinas”. No relatório final, a corporação indica ainda que foram levantadas informações sobre 152 bispos que assinaram um manifesto com críticas a Bolsonaro em 2020.